domingo, 15 de dezembro de 2019
CARTS PARA LUNA 2
Pois talvez os homens tenham essa cegueira indissolúvel para muitas coisas. Embora mantenham os olhos atentos à beleza, à carne, às formas, aos cheiros.
Aos vinte anos o mundo bem que poderia ruir ao redor do jovem enquanto ele mantém os olhos estáticos às suas paixões. Fico com essa suspeita que diz que o que mantém o mundo humano de pé são as paixões juvenis. Sem elas a vida seria um estorvo e nem os ocasos seriam bonitos e nem as estrelas e nem a cor do mar de todas as Pajuçaras espalhadas pelo mundo.
Eu, que nasci às margens de um rio amazônico aos poucos ia perdendo meu acento nortista. tornava-me praiano, a cada dia mais pisante de areia. Da casa onde morava à beira do mar eram alguns passos. E tinha aquele cheiro que só Aracaju tem. Era o final dos anos oitenta, tantas coisas rondando o planeta. Em Seattle nascia o grunge, o muro de Berlim ruía junto com toda a cortina de ferro, morria Luiz Gonzaga.
Conheci amigos surfistas e estive ao lado, como nunca estive de uma cultura negra da qual eu só ouvira falar de tempos em tempos, de fevereiros em fevereiros. É claro que me enchi de tolices e manias falseadas. Era o momento de construção de minha cara social, a parede levantada pedra por pedra do que eu seria diante das pessoas.
Mas na solitude eu era o mesmo que ainda sou. Não me encaixava. Eu era um estrangeiro longe de minha raiz, e minha cultura e isso me fazia bem triste. Além do mais sentia uma saudade dolorida demais da Vânia, a namoradinha que deixei, que pra mim tinha os olhos verdes e cabelos lisos e negros. Ela era a minha paixão e tudo o que eu fazia era para tê-la de novo ao meu lado. Imagine só, eu aos vinte anos fazendo planos como um homenzinho. Nem emprego eu tinha, nem uma formação (seja lá o que isso queria dizer pra mim). Mas todas as noites eu colocava a cabeça no travesseiro e fazia planos com Vânia.
Com o passar do tempo a fisionomia da menina de olhos verdes começou a desaparecer de meu juízo. Ficava só a cor dos olhos e o sorriso travesso. Depois de um ano e meio longe de casa, voltei e a primeira coisa que fiz foi visitar Vânia. Ah, eu era só felicidade. Os caras de uma gangue rival também não haviam esquecido de mim e me deram uma surra. Minha cidade da infância parecia não me querer mais. Quando voltei dessa viagem, com o o rosto inchado da surra, um pouco tempo depois, dei-me conta que lá no íntimo aquilo foi o início de uma transformação. Era você que começava a surgir em minha vida, porque naqueles dias o meu coração começava a aceitar aquela que lhe carregaria no ventre...
Pois talvez nem todos os homens tenham essa cegueira rudimentar. Talvez nem todos sejam essa imbecilidade grotesca. Havia muito mistério naquele início e o primeiro beijo demorou muito mais que um ciclo lunar.
Você começava a nascer ali. Eu nem sabia disso. Só agora sei.
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