Você me pediu que eu escrevesse algo sobre tudo, como quem escreve um desabafo de velhice. Mas acho que você quer, na verdade, saber de você em mim. Pelo menos é o que suponho. Juro que vou tentar ser o mais fiel possível aos retratos de alma, que guardo. Não sabe o que são retratos de alma? Depois tento lhe explicar. Ou quem sabe você entenda apenas lendo estes escritos que desde agora imprimo nesta antiga katablemata.
Se você tiver paciência para fazer uma viagem por antigos escritos que estão guardados aqui, neste lugar cibernético, vai poder mergulhar no que existe de mais pueril, confuso e profundo em mim, em tudo o que sou, em tudo o que tento entender de mim mesmo.
Há alguns textos que deixei nas CARTAS PARA LUA, que talvez, há algum tempo você tenha lido. Caso tenha lido. Naqueles textos eu lhe conto o momento exato em que você nasceu em mim. Foi no dia em que pela primeira vez vi um barco solitário, encalhado às margens do Rio Poxim. Um pequeno barco de ferro, que tinha ao lado a estampo de seu próprio nome. E ele se chamava Santiago. não vou repetir aqui essas histórias, mas peço que você, se possível, retorne a elas no momento em que desejar.
ANA
Eu não amei Ana desde o início em que a vi. Não foi fatal nem repentino o que depois construí por ela em mim. Sempre a imagino, nestes primeiros momentos de encontro, vestida com um uniforme em tons de terra, numa espécie sóbria de camuflagem, comum a funcionários de lojas de departamentos no final dos anos oitenta. Tinha os cabelos douradíssimos, cacheados, que se acomodavam nos ombros e despencavam até perto das nádegas. O rosto era muito jovem. Era muito bonita. Naqueles tempos essa moça deveria ter só uns dois anos a mais do que a soma dos anos que você tem agora. Vinte e um anos, essa era a idade de Ana. Toda a vida pela frente, como diriam as velhas gagás que frequentam novenas.
Naqueles dias eu não era muito menos tolo do que agora sou. Era muito mais jovem, isso sim, e meu coração quase nada tinha de marcas. Eu era um amontoado de bobagens juvenis e um poço sem fundo de planos para o futuro.
Não lembro a primeira vez em que me dei conta que a amava. Mas decerto não foi na primeira vez que a vi.
Mas, dando um salto além, nunca vou esquecer aquele vestido de noiva cor de vinho com o qual ela entrou na igreja de São José. E eu, que estava lá no altar, vestido como um garçom, de cabelos compridos e cara de moleque, como esquecer? Fazia muito calor dentro daquela roupa e me incomodava bastante o fato de que as bainhas de minhas calças alugadas estavam altas demais.
Lembro da conversa no carro do Bira, um gol, daquele modelo antigo, mas que na época era novo e que por isso fazia com que Bira se empavonasse todo. Lembro daquela conversa, ele dirigindo a me interlocutar pelo retrovisor.
Onde andará este meu amigo? Da última vez que o encontrei, estava em processo de recuperação de uma profunda decepção. Quase não o reconheci sem seus cabelos compridos. O Bira que reencontrei exibia cabelos muito curtos e brancos e pedalava uma velha bicicleta, além de carregar nas costas á guisa de aljava, um desses tapetes emborrachados de ioga. Parecia muito triste, apesar de se esforçar a demonstrar o contrário.
Naquela conversa dentro daquele carro que cheirava a novo, Bira me indagava como era a sensação de estar casando com alguém que se ama. Eu o respondi que não tinha idéia, porque talvez não houvesse distância suficiente pra isso. Eu estava envolvido demais e apaixonado demais pra saber se o que eu estava fazendo duraria o tempo de meu juramento.
...
O AMIGO POETA
O AMIGO POETA
Hoje fui ao lançamento do livro de um amigo poeta e foi exatamente hoje, sentado ali na platéia, ouvindo esse meu amigo ler seus poemas, que senti meus olhos arderem. E como de meu costume, naquele exato instante me vi junto das pessoas que habitam em mim. Ana, você, Nina, mocinha, Célia, Manu...
Todas que amo estavam ali comigo, ouvindo meu amigo recitar seus poemas.
Foi então que resolvi começar a lhe escrever, porque a cada dia que passa, sinto o tempo se acabando pra mim e também porque senti também bem fundo no coração essa dor que vez ou outra sinto... essa suspeita absurda de que o tempo corre mais do que me é justo. essa impressão de que por um capricho a vida, a minha vida, não permitirá que eu lhe veja e lhe beije a testa mais uma vez.
Vou dormir hoje cheio de palavras e inconformado. Inconformado é quase meu nome.
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