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Depois de dedicar horas a tentar desenvolver uma estufa capaz de secar as esculturas nestes dias de chuvas e umidade sem fim, o resultado positivo deixou-me mais leve.
O ar puro mais respirável para mim é o ar de um atelier em funcionamento, com inúmeras formas inacabadas e superfícies revelando cores indefinidas. Soa-me o atelier assim como um útero.
Minha pressa e inventividade são equilibradas pela paciência eficiente de Nívia. Ela é um tipo especial de ser humano que não se contorce em acordos e convenções e ainda assim é tenaz como um junco. É inteligente a ponto de brincar ao me dar respostas furtivas. É como se ela soubesse que carrega uma luz que preciso. Sem Nívia, eu tropeçaria dezenas de vezes antes de chegar aos meus fins.
Vez ou outra desabafo alguma coisa. Ontem eu soube que mais alguém próximo a mim está a morrer de câncer. Pelo que eu me lembre, a sétima vítima ao meu redor, dessa doença. É como se o demônio em forma de caranguejo andasse o tempo todo sob nossa sombra.Como o desenrolar dessa doença mais uma vez se fará diante dos olhos de Aísha, isso me preocupa. Não gosto de imaginar o espírito de minha filha diante dessas desfortunas mórbidas.
No mais, essa felicidade em ver o atelier cheio de esculturas e criações me faz lembrar de um tempo em que andei buscando por essa vontade e fé na capacidade humana de criar, de tocar os semelhantes com sua arte, com o seu modo de ver o divino.
Busquei por esse reencontro tantas vezes e errei tantas vezes o caminho, que de mim, de em mim restasse uma vontade para isso, poderia sair um livro de mil páginas.
Posso lhe dizer que se estou escrevendo é por estar num nível de vida intenso. Recuperado do vale da sede. Pelo que posso confessar, andei escrevendo pelos motivos errados; andei pelo inferno a tentar resgatar demônios perdidos. A volta deixou-me tão cheio de queimaduras que levei um bom tempo para entender que as cicatrizes se transformaram em minha nova pele. Olhe só pra minha cara agora...
Não sou tão mesquinho a ponto de medir o mundo desde minha felicidade. Conheço muitos que fazem isso e bancam os tolos a dizer que estão felizes. Eu ainda não fui feliz. julguei muitas vezes estar tão perto disso que nem me dei conta de que a felicidade é um ideal do tamanho de um universo.
Mas sou pretensioso.
Sempre fui pretensioso.
Não é que eu veja no atelier e na arte a salvação do mundo. O que eu vejo ali é minha salvação.
Tenho que falar sobre o contato que tive com estudantes das escolas públicas. Foi impressionante. Lembrei de um cara idiota que certa vez me falou que em escolas públicas só há pequenas putas e patifes que só querem foder. Eu e Nívia estivemos entre essas crianças; elas não são escolhidas pelo comprimento dos seus dedos; elas estão ali jogadas quase ao acaso. Deram-me uma sensação que há muito eu não sentia: esperança.
Mas não vou falar sobre isso agora. Haverá tempo. estou ansioso para medir os resultados da nova estufa do atelier, que seca em minutos as esculturas que levariam dias para secar ao ar livre.
Os cristãos chamam este sábado de sábado de aleluia. Há algo nisso com a espera. Os discípulos esperam o cumprimento da promessa do mestre.
Penso com isso num ditado de TAO que diz;
Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece.
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